quarta-feira, 30 de setembro de 2020

NOITES (E DIAS) DE LUA - PARA MINHA IRMÃ GISELE



Eu queria escrever uma estória na qual eu tivesse poderes mágicos, que nem super-herói ou fada madrinha. Nessa estória você não teria dor nenhuma, nunca. Nem eu.
Nem ninguém nunca iria embora da minha vida. E meu coração ia ser imenso, sem buracos, pra caber todo mundo que eu amo, sem precisar escolher.
Hoje à noite teria uma festa linda. A gente ia dançar as músicas mais bonitas do mundo e só ia parar para ver a Lua. Depois a gente continuava nossa dança. Dançava até desmaiar, de prazer, de alegria. Porque nesta noite, ah! nesta noite não haveria nem dor e nem sofrimento. E muito menos culpa. E a noite ia durar muitos e muitos dias.
Mas eu não tenho poderes mágicos e nem tudo é do jeito que queria que fosse: Nem toda noite tem lua, nem toda música é feita pra dançar...
Vai e leva uma flor amarela no bolso e olhe à noite para o céu, pra de vez em quando você se lembrar de mim.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Calmaria


Feliz eu não estou. Estou, digamos, feliz. O que parece ser a mesma coisa. Mas o que eu quero dizer é que não estou Feliz, com letra maiúscula, ou então "Feliz!" com ponto de exclamação.
Acabo de perceber que estou isso mesmo: feliz. Na minha. Tranquila.

Pois é, voltei ao normal. Ao meu normal, é bom que se diga. Acordo de mau humor, chego atrasada, tomo Coca light no café da manhã... Tudo voltou a ser do jeito que é. E eu acho isso uma delícia porque é menos cansativo, sabe? É bem mais fácil ser eu mesma quando não estou com ninguém por perto. Ninguém importante, que me faça disparar o coração. Até porque quando isso acontece não rola ser eu mesma. Tenho até medo de falar pro carinha que tenho um blog e ele dar no pé por perceber que eu tenho mil dilemas e sou carente.
Mas no momento, estou na minha. O mundo se acabando em pandemia, em crise financeira e eu na minha, calma. Calma do meu jeito peculiar. Nossa! Como é bom isso! Como é bom ter defeitos, ser paranoica, ciumenta, ter insônia, tomar um Rivotril pra acabar com a insônia.
Essa paz estava me fazendo falta. O bom do fim de uma paixão é essa calmaria que fica em mim.
Ok, pé na bunda dói, ninguém gosta, mas tem o lado bom de ficar sozinha: eu fico na paz, me preocupo menos com o que pensam (na verdade, com o que ele pensa, né?) de mim.
No final de semana passado eu já estava assim, só que não sabia e pensei que estava triste, mas, na verdade estava do meu jeito. Sem alegria forçada. Viva a melancolia! Eu sou assim: melancólica, não tenho talento pra alegria, sou séria. E agora eu posso ser tudo isso porque não tem ninguém (importante) comigo.
Sexta-feira comprei uns livros que jamais compraria perto de alguém (dele). E foi bom pra caramba estar sozinha e ler umas páginas e poder chorar horrores, soluçar um monte. O livro era triste, dolorido. Na verdade, era um clichê danado, mas um clichê que tocou meu coração e me fez pensar na minha irmã, nas minhas amigas. Em como eu amo cada uma delas e como eu faria sacrifícios por elas e... ah, essas coisas de mulher. Amizade verdadeira de mulher é coisa que dispensa (por não haver, talvez) explicação. E como eu chorei. E chorei à vontade, sem medo de ficar com olheiras no dia seguinte.
Essas coisas a gente não faz quando está com alguém, pelo menos eu não o deixaria me ver com os olhos inchados e ainda me explicar "este livro é tão bonito...". No mínimo, eu inventaria uma outra desculpa. Até parece que eu ia deixá-lo me ver chorando por causa de um livro, até parece...
Mas como ele não está, eu posso chorar a hora que quiser. E posso também rir. Ou então ficar quieta porque não estou a fim de falar. Eu sou meio esquisita assim mesmo, viu? Não é toda hora que tenho vontade de conversar. E como eu acho isso uma esquisitice tamanha, sempre tento mudar. Mudar pra ele. Só que tenho de ficar me policiando, me vigiando: são tantas esquisitices que não é brincadeira. Ou seja, quando ele está, eu quero sempre ser diferente, ser melhor, mais legal, mais inteligente, mais normal. Acabo cansada toda vez que me apaixono. Dá um trabalho incrível fingir que sou uma garota normal, que não penso o tempo todo em tudo.
Sim, eu finjo o tempo todo quando estou apaixonada, porque só um louco iria se interessar por uma esquisita como eu, né? É automático isso: me apaixono e começa uma encenação sem fim. Até que, por um motivo ou outro (ou eu ou ele se manda, por exemplo), a paixão acaba e eu caio em mim: posso ser eu mesma. O engraçado é que logo que isso acontece, olho pra ele de um jeito diferente e penso : como pude me apaixonar por um cara tão... tão... tão esquisito?

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Não leia: eu tenho de manter a pose

Reparou que eu dei um tempo por aqui? Que nem tenho escrito muitas coisas? Juro que não é falta de interesse. Há há há! Você jamais vai dizer isso de mim, darling. Vou tentar explicar meu “sumiço”: alguém inventou que não é bom falar tudo assim, de supetão, entregar o ouro. Então, eu confesso, minha falta de notícias é gênero.
Só que eu não aprendi a fazer isso direito e vou te contar tudo o que eu tô morrendo de vontade de te contar faz tempo, mesmo morrendo de medo de estragar (o quê?). Mesmo sabendo que em matéria de coração sou uma analfabeta e infrinjo todos os “manuais de sedução”, só porque eu não consigo te deixar com saudade de mim: eu dou notícias de mim o tempo todo.
Se quiser saber tudo o que senti vontade de falar nesses últimos tempos basta ler este texto longo e óbvio. Bem, vou torcer pra que role algum problema no micro que me faça perder tudo o que escrevi. Mas se não rolar, eu ainda tenho a opção de não publicar. Mas a verdade é que eu sou ruim demais pra falar e escrevendo eu me expresso melhor. Talvez ler te seja menos assustador do que ouvir.
Pra início de conversa, falo logo que ainda tenho muitos medos e o maior deles é descobrir, sem anestesia, que sou só uma pessoa especial pra você. Daquelas pra quem a gente diz “você sempre terá um lugar no meu coração”. Porque eu não quero nunca ter só um lugar no seu coração: eu quero morar no seu coração, entendeu?
É horrível pensar nisso, mas a verdade é que daqui a três dias talvez eu descubra (ouvindo de você) que foi tudo muito legal, mas acabou. Mas, por mais incrível que pareça, tô me lixando o quanto isso vai doer. Agora eu só consigo pensar no quanto é gostoso esse lance de gostar de você.
Você nem imagina como te conhecer revolucionou minha vida. Acabei de ler uma frase e vou ter de repeti-la aqui: você zerou a minha vida. Com aquele seu jeito de me fazer rir, sua preocupação com a família, com sua vontade de ser feliz, você acaba de me salvar.
Lembra que pedi pra você não se assustar comigo? Talvez seja uma das coisas que eu mais queira de você. Não se assuste comigo. Não se afaste de mim.
Eu não vou conseguir te provar, mas eu sou gente boa. Eu não tenho metade da maturidade e desprendimento que penso ter, mas eu sou gente boa. E mesmo se eu não for assim tão legal, eu sei que vou ser, logo, logo. Sim, eu vou virar a pessoa mais bacana do mundo porque você me deu uma vontade danada de ser uma pessoa legal, uma pessoa do bem.
Faltam anos luz pra eu ser assim tão "easy going” como eu tento parecer, mas a verdade é que eu até já consigo não ser tão reclamona ou estressada. Faz um tempão que não xingo o cara da Net ou a telemarketing da Nextel e seus gerúndios. Eu não tô nem aí pra quem fala errado, não quero mais mudar ninguém. Voltei a gostar de filme romântico, vê se pode! Também não implico tanto com casalzinho no início do namoro: de repente, o amor deles vai ser pra sempre mesmo. Quem sabe?
Não ria, mas eu tô gostando pra caramba da vida, até gostar de mim eu tenho conseguido. E você tem muito a ver com isso. 
Não se assuste comigo.
Sabe aquele friozinho na barriga quando alguém te toca? É bom, né? Mas sabe o que é melhor? É perceber que eu posso sentir de novo. Isso é uma das coisas que mais me deixa feliz e foi você que trouxe pra mim: a sensação de não estar mais anestesiada.
Eu pensava que já conseguia mandar na minha vida novamente mas estou feliz à beça por perceber que perdi totalmente o controle do que sinto.
Eu ando tão boba, você nem imagina. Nossa! Que bom que você não me viu esses dias, porque eu ando mesmo muito boba. Idiota, sabe? E é bom ser idiota no meio do expediente e olhar sua foto: eu abro um sorriso meio disfarçado mas que entrega tudo. Aí depois eu tento ser séria de novo, mas fica engraçado.
Viu quanta coisa você fez em mim? Agora eu te peço mil vezes: não se assuste comigo. Gostaria de conseguir te mostrar que, apesar das minhas complexidades, você me despertou só sentimentos bons: é uma coisa leve, suave.
Pode ser que você não seja assim tão obediente (ou tenha te fugido ao controle) e você já esteja muito assustado comigo. Aí, é certo que se afastará, sim, de mim. E então vou sofrer por intermináveis 15 minutos e depois vou seguir em frente. E vai ser uma pena você não me ver mais, porque, depois dessas coisas que eu vivi, certamente, eu sou uma pessoa bem mais legal. 
Um beijo grande. Com uma saudade imensa, daquelas que eu pensava que não sentiria nunca mais.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Homem não gosta de mulher fácil (?)


Minha amiga conheceu um carinha. Até aí, tudo bem: quase toda semana uma isso acontece com uma de nós. 

O enredo foi o de sempre: conversa pra cá, conversa pra lá, descobriam várias afinidades, trocaram telefones e, claro, uns beijos - pra ter certeza de valia a pena ligar para ele. Sabe como é, um beijo revela bastante sobre a tal "química". 

Beijo aprovado e, durante a semana, os dois trocaram mensagens, se falaram por telefone e combinaram de se ver.

E, claro, antes do encontro, bateu uma insegurança... Bem, quando isso acontece o remédio é ouvir as amigas. Reunião urgente! 

Vinho e Marisa Monte para a moçoila falar sobre o rapazinho. E mais vinho e Marisa Monte para os conselhos.

- Não dá logo de cara, senão já sabe: vai virar "lanchinho" e só.
- Nada disso! Tem que experimentar: e se a cama não for boa?
- Mas ela já disse que o beijo é bom pra caramba. O que custa segurar a onda e curtir mais dois ou três encontros? Fica só no beijo mesmo, vai por mim: segura a perereca!
- Que isso? Que século a gente tá vivendo? Qual o problema de finalizar? Ela não quer casar com ele... ou quer?

Neste momento, ela, além de insegura, ficou também confusa: dar ou não dar? Tentou abstrair a falação das amigas, cheias de boa vontade e regras sobre relacionamentos. Deveria "segurar a onda", se fazer de "difícil" ou curtir? O que realmente ela quer: criar intimidade aos poucos ou se jogar de cabeça? Risco sempre há de existir: se se fizer de difícil periga ganhar fama de "fazer doce"; por outro lado, 
transar de cara com um recém-conhecido pode lhe valer o rótulo de "disponível". Ok, eu conheço, você conhece, muita gente conhece um casal que foi pra cama sem nem saber o sobrenome um do outro e hoje estão juntos e felizes. Mas as "estatísticas informais" (também conhecidas como "bom e velho conselho da minha avó") mostram que... 

- A gente fica dando uma de moderninha e aí, o que arruma? Carinha babaca, que só faz programa que termina em motel. Isso, quando o programa não é o motel em si. Amiga, conselho de quem já viveu muito: se valoriza. Se faz de difícil.
- Que frase ca-re-ta! Tô boba, logo você vem com esse discurso?
- Gata, a verdade é essa, isso é milenar: modernidade é muito legal até a página dois. Homem continua gostando de mulher que se valoriza. Homem não gosta de mulher fácil. Isso é fato.
- Só porque a mulher dá pro cara no primeiro ou no segundo encontro ela é "fácil"? Não acredito que tô ouvindo isso... Antes de ela saber se quer alguma coisa com ele tem de fazer test drive, sim!
- Gente! Vocês tão me confundindo! Vou acabar não ligando pra ele nunca mais.
- Olha, você pediu minha opinião e eu tô dando: se valoriza, se faz de difícil, mostra que você não é que nem esse monte de mulher por aí, que dorme com qualquer um.
- Pois é, você pediu minha opinião e eu também dei: libera a periquita e seja feliz.
- Acabou o vinho, vou pegar outro.
- Aproveita e coloca aquele DVD ao vivo, aquele novo. Tá ali na estante.


E assim a reunião de grandes amigas prosseguiu. Falamos sobre outros assuntos, marcamos cinema na 6a-feira e o assunto "Dá-não-dá" não teve desfecho.

Na 6a-feira à tarde, apenas um e-mail: NÃO VOU AO CINEMA COM VOCÊS. VOU ARRISCAR E VER QUAL É. 

Segunda-feira de manhã, outro e-mail: NÃO DEI E ELE NÃO ME LIGOU. TÔ PÉSSIMA.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

OS LIVROS DA NOVA ERA / MARTHA MEDEIROS


"O livro não é um produto descartável: usou joga fora.
Nunca fiz isso nem com namorado,
imagine com um livor que é muito mais útil. Tem gente que diz que uma casa sem cortina é uma casa nua. Eu penso o mesmo de uma casa sem livros. É como se fosse habitada por pessoas sem imaginação, que não tem histórias pra contar."

segunda-feira, 15 de junho de 2020

De Valter Hugo Mãe para Marcelino Freire

Marcelino, tenho medo de voltar ao seu país porque cresci relutante para ser adulto e sei que me mantenho em tantas coisas apenas uma criança. Julgo que saio à rua ainda com a alegria de encontrar alguém com quem, de algum modo, possa pressentir a alegria que existia quando estávamos apenas a brincar. Eu não sei estar sozinho. Não aprecio a solidão, gosto das pessoas e não há como curar minha natureza para gostar delas. Mas agora tenho medo do seu país que eu amo. Fiquei toda a vida sonhando ser português e brasileiro, para pertencer a Machado de Assis e Fernando Pessoa. Sonhei que meu orgulho teria papel passado, como quem casa consciente, dedicado, de amor profundo, para toda a eternidade. Eu não previ este medo. Fico desolado.

Estão proibindo as pessoas de serem negras, Marcelino, proibiram de ser mulheres, Marcelino, agora decidiram proibir de ser criança e eu sabia que haveria alguma coisa que ainda me pegaria. Por isso, há muito que eu já brigava pelos negros e há muito que eu já brigava pelas mulheres, eu já brigava pelos viados todos e pelas pessoas sem explicação, tanta gente que só é, sem ter muito como entender ou fazer entender, e quer apenas estar em paz. Eu dei de barato tanta coisa sobre a paz que talvez tenha esquecido de estudar corações, o verdadeiro lugar da guerra. Sou muito despreparado. Passei pelo tempo buscando o deslumbre e vi a melhor versão de cada instante, não vi que medravam no escuro as piores intenções, os ódios que inviabilizam a humanidade. Eu, sinceramente, não vi, Marcelino.

Caminhei nessas ruas todas, tantos Estados, tantas capitais, e eu não dei conta desse ódio. Notei os sorrisos, o samba, o jeito generoso das garotas e de alguns garotos olhando para minha pouca beleza, eu notei os livros, tanta Literatura maravilhosa e a obra do Tunga e Artur Bispo do Rosário bordando as vestes para alindar seu encontro com Deus. Marcelino, no Brasil eu senti invariavelmente que Deus era possível. Sabe quando você se depara com algo perfeito e isso só pode ser graça de uma inteligência superior? Eu vi uma arara azul gigante, devia ter mais de um metro, e ela era mesmo um atributo mágico do mundo, estava livre no cimo de uma árvore na floresta amazônica.

Naquele encontro, eu consumei tudo, Guimarães Rosa e Elza Soares, Tarsila do Amaral e Fernanda Montenegro mais Marília Pêra e Walter Salles, e Darcy Ribeiro mais Heitor Villa-Lobos, e Cartola com Cildo Meireles e Adriana Varejão. Mais Gal Costa e Mônica Salmaso e Paulo Freire lendo a mão de Chico César genial. Eu entendi que Brasil significa beleza e uma profunda esperança. Juro. Parecia uma experiência mística, como se algum espírito me informasse e eu virasse um mensageiro sagrado. Eu elogiei o Brasil em todas as ocasiões porque eu acreditei, e acreditei que minha mensagem era sagrada. Você acha que um espírito me enganaria? Viria sobre mim de propósito para me iludir?

Marcelino, eu não consumei minha adultez, sou apenas um menino, fui sempre ao seu país para encontrar mais amigos e brincar um pouco de ser feliz. Lembra de gostarmos tanto de Manoel de Barros? Eu sei exatamente a razão de gostar tanto da poesia de Manoel de Barros. Ele usa pássaro e amigos e seus versos foram os melhores brinquedos. Minha história é rigorosamente igual. Não tinha muito mais. Pais, irmãos, amigos, os pássaros voando, versos. O lugar de guardar tudo é o verso. O único sentido de ter verso é amar gente e cuidar de pássaro livre.

Estão atirando sobre as crianças e alguém me diz que apenas as negras, são apenas as crianças negras, mas eu duvido que parem por aí. Nós, as crianças mais claras não estamos na linha do tiro? Nem que seja por vergonha, vamos morrer também se não dissermos nada, se não fizermos nada. E se as crianças negras viraram proibidas, que legitimidade teremos nós? Sabe, Gilberto Freyre explicou tão certinho que os portugueses são os mestiços da Europa. Eu tenho sangue árabe, africano e europeu. Sou uma porção de cada coisa e minha pena é não lembrar, só minhas células sabem.

Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente.
Você sabe a razão para rejeitarem os negros para as periferias? Eu não descobri. As casas do centro não têm tamanho para negros? Eles são maiores? Aumentam quando dormem? Quando sonham? Ficam derrubando paredes, perigando as fundações dos prédios? Eu acho que não. Eu vi um moço entrando na livraria à minha frente, coube na porta melhor do que eu. Você acha que tem alguém obrigando a que ele corra para a periferia depois de pagar o seu livro? Eu não posso acreditar. Que pena que eu não falei com ele, devia ter perguntado. Talvez me contasse de como fica infinito sonhando, ao ponto de perturbar o silêncio, tremer o prédio, causar fumo. Você já pensou se nossos sonhos também fizessem isso? Eu ia querer, Marcelino. Eu ia querer que meus sonhos fossem tão grandes. Mas sonho só com a paz. Estar sossegado com minha família e meus amigos. Notar os pássaros voando.

Marcelino, façamos uma jura de não morrer durante o plano de nos matarem. Não somos senão ternuras gigantes, guerreiros açucarados, eu entendi que nós precisamos de um pacto poético para embravecer nossa cidadania. Você, que é meu amigo e escritor que tanto admiro, não me falte nunca desse lado. Cuide de Chico Buarque e de Caetano Veloso, por favor, em qualquer cabeça sã do mundo eles representam o Deus possível. Cuide de Maria Bethânia. De Sônia Braga. Diga a Davi Kopenawa e a Ailton Krenak que a floresta vai sempre amá-los, diga que a arara me garantiu. Marcelino, fico ouvindo Rodrigo Amarante e quase ainda acredito em tudo outra vez (Rodrigo é perfeito. Poderia ser a própria arara). Quase perco o medo. Vista também sua roupa de super-herói e sobreviva. Você tem de manter a maravilha do Brasil. Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente, e vamos ficar mais belos que os modelos nos filmes gringos. Vamos, sim, Marcelino.

Haveremos de devolver o futuro às crianças. E seremos sempre futuros também. Só quem desistiu passou a ocupar seu canto no passado. Marcelino, reassumo meu compromisso com a esperança. Vou escolher sempre minha vida como lugar de semente. No meu medo, Marcelino, muita coragem vai germinar.

domingo, 5 de abril de 2020

Deixa eu te contar uma história?

Era uma vez, uma menina que tinha medo de algumas coisas: de cachorro, de dormir no escuro, mas o maior medo de todos, de todos mesmo, era de tomar injeção. Qualquer agulha, para ela, era do tamanho exato da maior dor do mundo.
Depois ela cresceu e deixou alguns desses medos na infância. Mas o medo de injeção cresceu junto com ela.
Ai um dia, quando ela já era adulta, fez uma cirurgia plástica. Como doeu a recuperação... Doía muito mesmo. Mais do que qualquer injeção.
Você é um menino esperto e já adivinhou que estou falando de mim mesma, né? Mas continua prestando atenção, porque hoje eu quero te contar uma história.
Depois que eu fiz essa cirurgia, perdi o medo de injeção. Ou melhor, eu não sentia mais dor quando tinha de encarar uma agulhada.
Um dia eu sofri muito. Não foi só um dia, na verdade, foram muitos, inúmeros dias e eles nem cabem no calendário de tanto que se multiplicaram. Foi por causa de um namorado que foi embora. Mentira! Não foi só assim, não foi só ir embora: ele me magoou bastante e de várias formas antes de ir embora. E, mesmo depois de partir, ainda me magoava. Por isso que eu sofri tanto, porque doía muito.
Depois, eu tive outros namorados. Alguns eu mesma pedi pra irem embora, outros foram sem nem me avisar. Quando isso acontecia, eu pensava “ai que droga, vou sofrer de novo”. Só que eu não sofria mais, porque não doía. Eu não sentia mais esse tipo de dor. Foi igual depois que eu operei e injeção parou de doer.

Sabe o que aprendi com isso? Que nosso corpo tem memória e balança: ele se lembra de uma coisa e, depois de pesar, ele compara com outra coisa.

Claro que essa história da balança e da memória eu inventei. Mas foi só essa parte. É que, às vezes, inventar histórias é melhor do que não fazer nada. Pode ser a história mais boba do mundo, mesmo assim faz bem. Sei lá porquê. Ainda não tive tempo de pensar nisso.
A gente perde muito tempo pensando em coisas que não têm explicação. 

Agora eu queria te pedir uma coisa: pra você não perder tempo pensando que eu tô triste porque você não quer ficar. Juro que não vou sofrer só porque eu queria uma coisa e você, outra. Faz muito tempo que eu não sofro. Sofrimento, de verdade, foi só daquela vez, o resto é coisa à toa.

Às vezes eu ainda sofro aquela dor. Mas é só às vezes, e só aquela. Tem gente que gosta de sofrer junto. Eu não gosto. Nem junto e nem separado. E também não divido minhas dores com ninguém: se elas são minhas eu que as sofra quietinha. Ninguém fica sabendo.

Você falou que está preocupado comigo, mas não precisa. Puxa, será que você se sente responsável pela dor dos outros? Esquece isso: você já deve ter dores, que são só suas.

Você sabe guardar segredo? Quero te contar um: quando escrevo uma história, eu escrevo que tenho poderes mágicos, que nem super-herói ou fada madrinha. Se na vida de verdade fosse assim, você não teria dor nenhuma, nunca. Nem eu. Nem ninguém nunca iria embora da minha vida. E meu coração ia ser imenso, sem buracos, pra caber todo mundo que eu amo, sem precisar escolher. Hoje à noite teria uma festa linda. A gente ia dançar as músicas mais bonitas do mundo e só ia parar para ver a Lua. Depois, a gente continuava nossa dança. Dançava até desmaiar, de prazer, de alegria. Porque, nesta noite, ah! nesta noite não haveria nem dor e nem sofrimento. E muito menos culpa. E a noite ia durar muitos e muitos dias.

Mas eu não tenho poderes mágicos e nem tudo é do jeito que deveria ser. Nem toda noite tem lua, nem toda música é feita pra dançar... 

Então, se você quer ir embora, vai. Eu fico bem. Eu só acho que você vai perder uma companhia ótima para festas em noites de Lua.

Mas se já está na hora, vai. Leva uma flor amarela no bolso, pra de vez em quando você se lembrar de mim.