sexta-feira, 11 de julho de 2014

Marina Gouvêa, a poeta

Minha tia Marina já nasceu poeta mas só hoje ela lança seu primeiro livro. Então, esqueça aquilo que te ensinaram sobre não julgar um livro pela capa. Esta capa é um aperitivo do conteúdo e deve ser saboreado pois também é obra dela (originalmente um bordado que ficou em 1º lugar num concurso. Preciso falar mais sobre sua sensibilidade?).




Tenho o orgulho de ser leitora dela desde criança e certamente vem daí minha paixão pelas letras. Sempre ia (vou) à casa dela. E quando era criança, tipo oito ou nove anos, amava entrar em seu quarto para olhar os livros, muitos, muitos deles. Todos em uma estante de madeira escura, alinhados lado a lado. Cada dia admirava uma prateleira. Admirava as cores, os títulos.


Aleatoriamente escolhia um e lia a introdução... Mas não tinha nem idade e nem vocabulário para entender nenhum deles. Aí, ela ia até mim, falava um pouco sobre o autor, e sutilmente pegava um exemplar de literatura infantil (e depois infanto-juvenil) e me indicava. Na maioria das vezes eu lia lá mesmo, deitada em sua cama. Sempre fui muito abusada na casa da minha tia. E meu tio Zé Luiz (meu segundo pai) também não se importava. É certo que nem ele, nem meus pais e muito menos os primos - que brincavam na rua ou jogavam video game na sala - entendiam o que me levava a "perder tanto tempo" devorando aqueles livros. A primaiada toda lá tocando o terror, brincando horrores - na época o sucesso era o Atari. A galera lá se matando para avançar a fase do Pac Man e do Super Mario Bross e eu lendo. Sem entender nada, mas lendo. Como eu gostava daquele ritual...


De vez em quando, lia também suas poesias. Escritas a mão ou datilografadas. Tinha a do passarinho machucado, a do Ricardo, a do dia chuvoso em Paraty... Não me peça para indicar meu poema preferido - são todos lindos, suaves, profundos. Sou apaixonada por tudo - seja verso, seja prosa - que ela escreve. Minha poeta predileta transforma, com ajuda das palavras e com precisão cirúrgica, o fato mais banal, mais cotidiano em emoção, sentimento. Fruto de seu olhar puro, doce e carinhoso (reflexo de sua alma). Um exemplo aqui: bordar é, para muitos, atividade simples, um passatempo, para outros, ganha pão, expressão de criatividade. Para tia Marina, é poesia:





BORDANDO A VIDA


Por entre agulhas e linhas
Eu sigo bordando sonhos.
Colorindo as histórias da vida,
Faço o mundo mais risonho.

São muitos os pontos que uso
numa combinação feliz:
Ponto haste, mosca ou cheio
Espinha-de-peixe ou ponto nó
Ponto atrás, nó português
Ponto areia ou rococó
Ponto aranha, alinhavo
Falso matiz, nó francês.

Com o entra e sai da agulha
Construo castelos, pontes
Crio aves, flores, lagos
Vales, florestas e montes.
Se não acerto o bordado
Fecho os olhos, conto até três,
Desmancho ponto por ponto
E, com muita paciência
Começo tudo outra vez.

Quando os fios se embaralham
Não desanimo e, de repente,
Desato o nó com cuidado
E, confiante, sigo em frente.
Com a maciez das delicadas linhas
E os matizes de cada cor
Expresso as belas emoções sentidas.
Vejo o bordado com olhos de pintor

Porque bordar é pintar
Com linhas coloridas.
Com mãos de artista e carinho.
Em seda, itamine, algodão,
Fina cambraia ou puro linho


Eu sigo bordando a vida.
Até quando? Isso eu não sei.
Ao terminar, corto a linha
E digo baixinho: – Pronto, acabei!


Como já falei, ela nasceu poeta. E quem garante isso é minha mãe. Tem uma história que eu adoro: as três irmãs (Mammy, tia Marina e Dinda Verinha) arrumavam a casa (vovó Arquimínia fez a viagem muito cedo e deixou as meninas bem novinhas, então elas - sob o comando da minha mãe - eram as responsáveis pela casa). Naquela época, era comum passar cera no piso e cobri-lo com jornais (acho que era para o brilho durar mais). Minha mãe conta que tia Marina começava a colocar os jornais e ia aos pouquinhos se esquecendo do que tinha de fazer... Começa a ler as notícias, se desligava do mundo e lia, lia, se deixassem, lia a tarde inteira.


Minha mãe, elétrica que é, sempre achava a coisa mais estranha e bonita a tia fazer duas coisas tão aparentemente opostas ao mesmo tempo: embalar um filho bebê e ler. Era comum vê-la com um livro em uma mão e o filho sendo embalado na outra. Leitura e afeto sempre se misturaram nela.


Também nasceu com alma de professora: aos 14, 15 anos já tinha aluninhos, a quem alfabetizava em casa mesmo. Depois fez Faculdade de Letras e nunca mais parou de lecionar. Mesmo quando se aposentou continuava com alunos particulares que queriam prestar vestibular ou concurso.


Nunca estudei com ela no colégio. No colégio, é bom frisar, porque amava ter aulas particulares. Nunca fui má aluna em Português, mas não resistia a ter uma explicaçãozinha extra antes de uma prova. Foi com ela que aprendi as regras da crase. E nunca, nunca as esqueci. Ênclise, mesóclise e próclise também aprendi com ela. Ah, a primeira poesia que decorei foi na casa dela, da Alice Ruiz:


Assim que vi você

Logo vi que ia dar coisa

coisa feita pra durar,

(...)

Agora não tem mais jeito,

Carrego você no peito

Poema na camiseta

Com a tua assinatura

Já nem sei se é você mesmo

Ou se sou eu que virei alguma coisa tua


Eu teria uma infinidade de outras passagens para falar, mas meu coração está apertado demais por eu não ter podido ir ao lançamento do livro. Estou um pouquinho triste. No final do mês vou vê-la e dar o costumeiro abraço. Abraço de leitora, sobrinha, fã e quase filha.


PS: esta não é a primeira vez que falo da minha tia. Há cinco anos publiquei um conto (premiado, obviamente) aqui.


PS2: E esta aqui é a foto dela recebendo o prêmio pelo conto de que falei acima. Pra vocês verem que, além de poeta, sensível, inteligente, ainda é linda!



                                                      Fã              Poeta        Amigas

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